Na capital cearense, que hoje se configura cada vez mais cercada de edificações e menos de árvores, foi transformando sua simpática casinha em minimuseu particular (número 162 da rua Baturité, mais conhecida como Rua da Escadinha, no Centro), que Christiano Câmara tornou-se, aos poucos, uma figura ímpar, sobretudo, na memória afetiva do fortalezense. Falecido em março de 2016, às vésperas de seus 81 anos de idade, foi detentor de saberes dos mais variados, guardião de uma ‘Era de Ouro’ que teimou em não prosseguir.
Filho do jornalista Gilberto Pessoa Câmara e de Zuleika Stael Catunda Gondim Pessoa de Torres Câmara, Christiano cresceu ao lado de dois irmãos: Helder Câmara (1937-2016) e Ronald Câmara (1927-2015). É também sobrinho do ex-arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara (1909-1999). Com dona Douvina, teve as filhas Wanda, Zuleika e Yara (esta última falecida aos 14 anos em decorrência de uma meningite); das duas filhas, nasceram cinco netos.
Christiano, sempre na companhia de Douvina (com quem foi casado por quase 60 anos), literalmente abriu as portas para o conhecimento de uma parte importante de nossa história. Sua trajetória teve início ainda em 1950, a partir da sua paixão pelos discos. Destes, entre discos de cera de 78 rotações e vinis em estilos que passeiam do clássico ao popular, do erudito ao instrumental, somam 28 mil exemplares. Mas com o tempo, ele foram se misturando a inúmeras fotografias, livros, filmes, CDs e outros equipamentos (gramofones, rádios, etc), devidamente dispostos e organizados de acordo com suas conveniências em todos os cômodos da casa, a mesma que ele nasceu e que sempre manteve com recursos próprios.
“Quando penso em Christiano Câmara, penso na sorte que tive em poder conviver tão de perto com um homem múltiplo de tantos sentimentos. Ele era generoso, curioso, amoroso, mas também zangado e contestador. Porém, esse amálgama de emoções era, sem dúvida, a chave de toda a sua genialidade. Ele sempre me dizia que só existiam dois tipos de homem, o puro e o inocente. O puro nasce, vive e morre puro. O inocente é aquele que muito provavelmente se tornará um ‘sabido’ assim que a oportunidade surgir. Seu Christiano era um puro”, atesta a fotógrafa e amiga pessoal Nely Rosa.
Aos 15 anos, o primeiro emprego de Christiano foi de contínuo no Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários. Cinco anos mais tarde, o segundo – também como contínuo, agora no Banco do Brasil – se estendeu por 25 anos, até atingir a aposentadoria. Conhecido como ele só, em 2003 teve seu cotidiano projetado em tela através do olhar de seu sobrinho cineasta, Márcio Câmara, no premiado documentário Rua da Escadinha 162. Para além da casa-museu-acervo, o curta-metragem centrou foco nas ideias do pesquisador que, assumidamente autodidata, alcançou o posto de um dos maiores memorialistas do País.
“No Brasil, pra você ser pesquisador e historiador, você tem que ser, antes de mais nada, colecionador”, atestava ele no próprio filme, que teve sua estreia durante o festival internacional É Tudo Verdade e, ano seguinte, foi escolhido como melhor documentário em curta-metragem pela Academia Brasileira de Cinema. “Algumas pessoas resolvem problemas sérios de uma comunidade: Christiano Câmara, por exemplo. Sua atividade era tão importante que ele preenchia lacunas das políticas culturais, da memória, do patrimônio cultural. Junto com Nirez, eram dois baluartes a serviço do Ceará”, destaca o jornalista Gilmar de Carvalho.
Para Nely Rosa, porém, a saudade e a gratidão falam mais alto. “Sou grata por poder ter conseguido me despedir de um amigo tão precioso e único. Vivemos numa cidade selvagem e sem memórias. Em qualquer lugar do mundo esse Dom Quixote seria respeitado com honras de um mestre. Com a sua partida, arde a biblioteca de uma vida inteira de conhecimento e pesquisa. Mas seu Christiano sempre viverá nas nossas lembranças e nos nossos corações”.
Christiano Câmara é mais um desses casos de cearenses notáveis que mostraram para o Brasil – e o mundo – aquilo que temos de melhor. Sua trajetória é motivo de orgulho para o Sesc Ceará, braço social do Sistema Fecomércio. Orgulho este que se estende a todos os artistas e pensadores que brilham, fazem e acontecem. E é com essa ideia no coração que, em 2020, a Mostra Sesc de Culturas vai acontecer. Com uma programação 100% digital, o encontro será também 100% made in Ceará, para que todos, em qualquer lugar, conheçam os talentos da terrinha.